sexta-feira, 17 de julho de 2009

Defenestração.


Esta crônica de Veríssimo há muito encanta-me por sua forma
extremamente hilária de descrever, a total perplexidade diante
de uma palavra e por este estranhamento vai percorrer dezenas de possibilidades onde o leitor também toma de empréstimo as emoções do autor, embora um tanto longa, convido você a deliciar-se com esta crônica e conhecer um pouco deste autor que admiro.
Luis Fernando Veríssimo.

Defenestração

Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.

Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.- Os hermeneutas estão chegando!- Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas.

Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.- Alo...- O que é que você quer dizer com isso?Traquinagem devia ser uma peça mecânica.- Vamos ter que trocar a traquinagem.

E o vetor está gasto.Plúmbeo devia ser um barulho que o corpo faz ao cair na água.

Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:- Defenestras?A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.

Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:- Aquele é um defenestrado.

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata. Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião (dicionário do Aurélio Buarque) que não me deixa mentir. ? Defenestração? vem do francês ?defenestration?.

Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela. Ato de atirar alguém ou algo pela janela! Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação.

Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo.

Por que, então, defenestração? (...) Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração.

Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada. Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.-Querida...-Mmmm?- Há uma coisa que preciso lhe dizer...-Fala, Amor-Sou um defenestrador.E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama: Estou pronta para experimentar tudo com você! TUDO!

Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e babulcia:- fui defenestrado...Alguém comenta:- Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela?Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.

Crônica - Luís Fernando Veríssimo


4 comentários:

Bronca no Trombone disse...

Boa! Gostei dessa crônica! A palavra eu conheci há poucos anos, por causa de uma novela, onde um personagem citava-a com freqüência. Mas o Veríssimo soube embalar bem o conteúdo e prender a atenção até o ponto final.

Legal!!!

Beijos,

André

Anônimo disse...

Eu amo Veríssimo!

Maria Betânia disse...

André,
Creio que defenestrar é um verbo com potencial pra ser amplamente conjugado, por conta da vontade que nós brasileiros temos de sair,defenestrando por ai...

Valeu amigo.

Maria Betânia disse...

Kátia,

Tb amo Veríssimo, ele tem uma forma de descrever situações, pessoas e lugares de uma forma única.

Grata pelo comentário.

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